quarta-feira, 19 de março de 2008

COMO ENCANTADO AO LADO TEU...

Daqui a pouco é outono aqui. Sei que aí também será. Talvez você viria me ver se soubesse que estou desde às sete tentando dar seqüência ao enredo preguiçoso que vivemos trancafiados naquela sala fria, sem som e com paredes que agora lamento por não ter dado mais atenção. Mas deixa pra lá, essas paredes são sempre tão iguais, são capazes de ser a mesma que confinam três personagens sartreanos no inferno dos outros.

É que já é quase outono, porra. Já foram duas estações e meia desde que a história ficou inacabada, desde que você viu sua moça encantadora despedir-se apressada porque os olhos dela ficaram daquele jeito que você tinha medo. Você até tentou um assunto casual, que a magoou a princípio, mas ela também viu seus olhos com o mesmo pesar dos que surgem no terceiro ato.

Tínhamos uma música, a capa de um livro, três mudas de roupa de cada um para lembrar e nenhuma confidência desesperada de quem age com paixão pela última vez.
Não sobraram promessas para o dia seguinte e talvez eu lamentasse sua irresponsabilidade em não criar ilusões. Essas lições breves e emblemáticas devem ser próprias da alcova. Lembro de todas. Foram poucas ditas em frases com sujeito, predicado e um verbo de ligação, sem mais. Você pronunciava cada frase como se fosse uma sentença. Agora eu tenho a Nana assoprando a mesma canção desde às sete, um tímido frio de outono e um copo d’ água que me deixa nervosa enquanto não estiver seco.

segunda-feira, 17 de março de 2008

NADA É PRA JÁ

Fechada pra balanço.
Obrigada.
A Direção.

quinta-feira, 13 de março de 2008

É PROIBIDO PERMITIR

Não, não pode. Não pode assoprar. Não pode sentar em cima do pé. Não pode contar até três em ordem decrescente. Não pode assoviar o hino nacional. Não pode colocar papelzinho com nome dentro da caneta Bic. Não pode atender ao telefone no segundo toque. Não pode coçar a nuca com a mesma mão que fez o sinal da cruz. Não, não pode. Não pode comer na terça-feira o chiclete que grudou na porta da geladeira no sábado. Não pode encher bexiga com os olhos fechados. Não pode buzinar na esquina. Não pode ser o primeiro a abrir a correspondência. Não pode tomar aspirina com café. Não pode encostar no interruptor com as costas da mão. Não pode fazer reloginho com caneta vermelha. Não pode usar pronome oblíquo para falar com o chefe. Não pode estalar os dedos quando estiver chovendo. Não, não pode. Não pode crescer nenhum centímetro na quaresma. Não pode trocar de absorvente durante comercial de carro na TV. Não pode olhar por mais de trinta e três segundos os dreads do Bob Marley. Não pode entregar o bilhete para o cobrador na subida. Não pode puxar papo com o vizinho ao lado, na descida. Não pode entrar no Pão de Açúcar com botas de escalar montanha. Não pode comer churros quando tiver espelhos por perto. Não pode usar colete quem ouve Rick Martin. Não pode conjugar na terceira pessoa homens de suspensórios e mulheres de rendas. Não pode comer bolo de aniversário enquanto pisca. Não pode matar formiga no dia de santos reis. Não pode comer peixe com sapatos marrons. Não, não pode. Não pode perder a virgindade perto da fogueira de São João. Não pode colocar fotos com brincos no porta-retrato do corredor. Não pode usar pulseira em procissão. Não pode apertar a mão que usa abotoadeiras. Não pode matar barata com chinelo Rider, com telinha. Não pode xingar o mosquito da dengue de vodu. Não pode acender vela antes das três da tarde. Não pode aparar a grama perto da janela. Não pode cutucar o umbigo. Não pode costurar vestido com o dedal da tia. Não pode prender o cabelo com lápis. Não pode colocar suco de morango na jarra verde-espinafre. Não pode imitar o Popeye. Não pode colar adesivo Red Norse na capa do caderno de caligrafia. Não pode cutucar o siso depois da salada. Não pode escovar os dentes e perguntar a que horas os sinos dobram. Não pode fazer aviãozinho com a ata da reunião. Não pode dar meia volta em ambientes de quatro metros quadrados. Não pode trocar a roupa dos santos. Não pode usar meia-calça em dias pares, nem cozinhar alcachofra em dias ímpares.

quarta-feira, 12 de março de 2008

HANIN

E foi fácil se convencer de que não serviria para ser a mulher ideal nem para aquele sujeito que num domingo sem alternativas acompanhava sorteio da tele-sena, esboçando rápidos planos de como seria se tivesse R$ 500 mil a mais em sua conta.

Sujeito esse, típico de um dia assim, ganhava contornos formidáveis para ela, aquela pequena que guardava papos seqüenciais sobre tragédias gregas, pratos do mediterrâneo, bastidores da política atual, indo de assuntos Marie Claire às receitas de Palmirinha, conseguindo entrar em temas que abordavam de hábitos de Hélio Oiticica às esticadas de Maysa, com opiniões modeladas e citações de efeitos seguidas de risos sutis para demonstrar o quanto seria uma companhia interessante. Isso por dentro. Por fora ainda reservava olhar de uma bacante, como se presenciasse um longo vai e vem.

E aquele um, de controle remoto a postos, ainda a olhava de cima, como se quisesse, mas tentasse seguir as ordens da mãe para arranjar alguém mais condizente com uma mulher para conservar ervilhas para salada e esconder o comprimento da saia com um avental de barrados em ponto pipoca e grampos no cabelo.

E ela, com sua calcinha polaca, os peitos folgados numa blusa branca das antigas, com a mesma panca que já havia feito a cabeça de tantos homens em outros tempos, estava ali cara a cara com aquele que usava o mesmo fio dental de 99.

Como pudera cogitar ser dele, aquele que tudo sabia, tudo podia e tudo oferecia à outra. Era pra outra que ele deixava bilhetinhos amorosos colados na porta da geladeira, cuidava em dias de tristeza, dava carona até o trabalho e acordava pra um rapidex às três da manhã.

Não que ele não pudesse ser dela. Poderia, mas não agora. Não agora enquanto ela ruminava o fracasso diante de tantas coisas que a foderam em ordem alfabética. Para ele, não poderia ser qualquer coisa, qualquer citação, metáforas previsíveis, ele precisava de mais e ela tinha de menos. Ele estava em 60, ela em 80.

terça-feira, 11 de março de 2008

ISOLDA

E foi fácil se convencer de que não serviria para ser a mulher ideal nem para aquele sujeito de colete quadriculado e meia a aparecer no mesmo tom.

Passara a infância inteira descobrindo várias linhas de creme para ver se algum deles faria com que o nariz afinasse, ganhasse coxas torneadas e o cabelo fosse convocado para 30 segundos da Wella. Daí pensava em ir por partes: primeiro daria um jeito nos dentes, depois engordaria alguns quilos só na panturrilha e tomaria água de concha a cada 30 minutos para que ela se alojasse em seus seios.

Quando a preocupação deixou de ser essa, já tinha formas suntuosas, papo interessante e frases prontas para o que quer que seria. Fez se bonita.

Mas 15 anos mais tarde ainda não serviria para o pseudo-engomado. Menos ainda para aquele que todas corriam atrás. Nem todas, ela que encasquetara que ele era o ideal.

Sei lá, não sobrava beleza quando de pijamas e cabelo que dorme sem secar, babava enquanto escovava os dentes e às vezes saia um barulho quando tomava água, nada que fosse capaz de recuperar a finesse depois.

Mas quando ele chegasse sempre teria novidades, faria rir com um monte de dúvidas de como continuaria a letra de uma música que ninguém ouvia, de algo que estive pensando, mas ele também poderia se apaixonar quando trouxesse um achado qualquer e visse a intensidade com que me atiraria ao chão...

Convencida de que viveria só, planejou um filho para nascer homem, já havia decorado a escalação que fez do time o campeão, fez pose de grito no espelho para ver como se sairia durante um gol, e tomariam coca-cola (coca não, a mãe ainda carregava com poeira os conselhos de fidel) arrotando e ele iria achar que ela era a fusão do que queria como pai e tinha como mãe.

Porém aí ele já tinha optado pela outra, ela passaria horas em vão tentando saber de onde sairia a paixão. Deveria ser dela por excelência, mas não estava nos detalhes a diferença, ela nem tinha um português tão correto, e ele fazia questão, ah se fazia, cobrava erros de preposição, sei lá, bonita? Era bonita? Fazia o tipinho serei sua mulher ideal, sendo assim portava se como senhora dele, sem mais, criava programas que quase nenhuma outra garota queria, inventava gírias e turmas de amigos para disputar com a que ficou sem escolha.

segunda-feira, 10 de março de 2008

DORALINDA

E foi fácil se convencer de que não serviria para ser a mulher ideal nem para aquele sujeito que esperou até aqui para arranjar companhia para noites frias e finais de filmes que não tem com quem comentar.

Sujeito este de pele finas hálito agradável, com modos muito minimalistas para um dândi que ainda cultiva discos aspirados toda quinta-feira, quando desempacota um long play “Maria Alcina”, que dá berrinhos quando atingida pela agulhinha, agora lustrada.

Aquele sujeito de adega em casa, com cartas variadas para suas companhias: prosecco para as damas incandescentes, uma versão mais adocicada para aquelas que usam cinta-liga e exageram no cumprimento da saia

E ela tentava se encaixar nas suas obsessões sutilmente prosaicas e demodês, como se não restasse piedade por parte de alguém que uivaria ao ver seus contornos regulares à meia-luz.

Mas ah...o pensamento atingia patamares longevos por aquele outro de toque intenso, boca que quer ficar, palavras decifrando ais. Meu Deus, como pudera ele tão daquele jeito sei lá, que a endoidecara com demonstrações parcas de si, de um amor que ela maquiara em personagens cretinas, fêmeas vorazes, tentando fisgá-lo a qualquer que fosse o custo, querendo esconder seus carnês, seu aparelho dentário usado antes de deitar, suas manias que a pintavam menina, seus detalhes que por vezes afastavam-se dele, sua barriga que doía uma dor de adolescente querendo chamar a atenção, simulando papos em cenários simulacros, a oração deveras perdoada sabe-se bem Deus que saia dela, tão cética.

Oh, quem quer que fosse, responsável por fazer as coisas tornarem-se reais, torrente de bondade alheia... ela, mesmo que não servisse nem para o sujeito que agora abnegava suas decisões políticas, tomado por um servilismo diante daquela que estava convencida de que não serviria nem para sua hipocrisia a custo de banana, achava-se no direito de desejar aquele do cheiro de sempre, cenho conservado de traços marcantes e personalidade que envenena no antes, mas acalma no depois.

Ah, e ela voltara às mesmas percepções de quando começara a ler “A Normalista”, tendo a como a narrativa que mais pudesse se aproximar das HQs de Zéfiro, distantes demais para serem adquiridas... quanta bobagem, mas é que a partir dali todos os outros foram destruídos e só sobrara este, este que previa, emoldurava e arranjava respostas para os diálogos e sonhos, recorrendo a fórmulas já gastas para firmar pensamento em que pudesse tê-lo, com suas formas que tudo beirava a perfeição, de palavras proferidas como desconhecidas e que meia dúzia delas ainda martelavam como juras de amor lembrando Bocage, Byron ou qualquer que fosse o inspirado da vez.

domingo, 9 de março de 2008

É TUDO VERDADE

Só aconteceria naquele dia, naquele momento e com aquelas pessoas.

Ela (faixa verde e acetinada do cabelo na cintura, vestido de semi-noite-de-gala, pés descalços, esmalte carmim nas mãos, cor-de-noiva nos pés, acabou de acordar só com um olho, dormia debruçada na mesa do bar sem babar, às 6h45) pergunta:

- Bom dia, eu vim aqui só pra pesar, mas estou impressionada com o tamanho deste frasco de Listerine. Eu não vou comprá-lo agora, não teria cabimento, mas quero saber quanto custa. O senhor pode ver pra mim?

Ele (funcionário há mais de dez anos da farmácia em frente à lancheteria que toca rap, veste camiseta de uniforme branca com calça-jeans-duas-pence-feitas-pela-ex-mulher, tênis de montanha, está com gosto de café e usa óculos pendurado no cordãozinho) com tranqüilidade responde:

- R$ 25.
- Hum...até que compensa, né?
- Compensa.
- Tô achando o máximo. Quem compra 1,5 litro disso aqui? É edição limitada?
- Ah...(monossilábico e onomatopéico)
- Nem cabe no armarinho do banheiro, vai dividir a mesma repartição de bom ar e desinfetante. Mas quem se interessa por esse tamanho?
- ...
- Ah, é tamanho família, né? Porque numa família de cinco pessoas, duas bebidinhas no copinho de 10 ml não dá pra nada. Agora esse vai ser útil por alguns dias. Mas sabe (já é um monólogo), eu conheço quem beba direto no gargalo do anti-séptico, daí fica foda porque uns acabam usando mais do que os outros. Além do que fica espalhando germes de boca por aí, mas quem se importa? Ele nem sabia que era só ele que usava aquele mesmo vidro. O senhor nem deve estar entendendo o motivo desta minha fixação pelo assunto, mas é que esse aroma de anti-séptico é a lembrança que eu trago de uma paixão que começava a desabrochar, lá por meados de 2006. E depois a mesma pessoa que fez ponta no episódio da paixão fez uma clássica cena de cinema-mudo enquanto usava o Listerine pela manhã, o dele era do verde. E ele representava super bem o colocar no copo, bochechar e enxaguar, e eu peço pra ele fazer mais várias vezes e ele fica de onda, mas sempre repete a grande cena só pra eu dar risada bem alto e eu contei pra várias pessoas esse episódio porque achei muito engraçado, mas sabe, eu nem consigo reproduzir do jeitinho que ele fez para que as pessoas entendam porque eu acho isso tão engraçado, então sempre que eu vejo Listerine eu fico lembrando dessas seqüências. Tá, o senhor nem tem nada a ver com isso, mas é importante como algo pensado apenas para a higiene pessoal pode ter tanto reflexo na vida de uma garota de 24, além do projetado. Vocês dão desconto no cartão Folha Vip?

sábado, 8 de março de 2008

FELICIDADE FOI EMBORA

O bico do rapaz estava lá só porque ela confessou amar devotamente o açafrão que coloria o arroz, no almoço que ele oferecia aquele dia. No cardápio: farofa de cenoura, salada verde e alguns filés pra acompanhar.

O fim do amor vivido por mais de nove semanas e meia, que começou na cozinha também terminaria ali tendo como testemunhas o pingüim da geladeira, trocentos imãs coloridos e o recado que anunciava o regime marcado pra começar na segunda-feira.

O início foi vapt vupt. Dois dias depois de ela ter pedido pra ele virar uma omelete na frigideira sem teflon caíram no hully gully. Dali pra frente foi só rendição, juras de amor eterno e um filho pra dar o seu nome.

- Você falou uma vez que não gosta de comida japonesa.
- Odeio.
- Eu como toda quarta, num restaurante aqui perto.
- Se fôssemos casados eu jantaria pipoca toda quarta.
- Não, eu iria mudar o hábito para ficar com você.
- E você ia cozinhar o cardápio de hoje de manhã pra gente?
- Claro, o objetivo é derreter seu coração.
- Depois eu faria uma torta de maçã pra gente e o que sobrasse comeríamos no café.
- Perfeito. Você pode dormir com ar condicionado? Ou tem rejeição?
- Eu dormiria coberta.
- Edredon leve nas cores que você escolher.

Acostumada com tudo o que é "nego torto, do mangue ao cais do porto", se jogou pra ele, que entendia de poesia, tinha amizade duradoura com poetas e foi abstêmio por cinco anos.

- Laranja e amarelo.
- Com um pouco de frio dá pra se aproximar, enquanto dormimos pernas, mãos nas costas para uma massagem leve, relaxante, nada muito colado, apenas em pontos estratégicos. Funciona.
- Você se importa de se cobrir um pouco? Assim ficamos juntos.
- Eu durmo de edredon, teria apenas que mudar a cor.
- E o que faríamos às 21h de todos os dias?
- Eu vejo o jornal na TV, obrigatoriamente. Preciso. Às 21h estaria bom para um filme, em casa ou no cinema. Se você tiver que acordar cedo, ficamos em casa, vendo na TV.
- Poderíamos acender um incenso, comer alguns chocolates, ouvir Bach em alguns dias, Nana nos outros e você iria ouvir algumas lamentações. Também iria rir bastante comigo e ser obrigado a responder perguntas sobre seu trabalho.
- Seria prazeroso, quero ser seu herói.
- Na quinta-feira teríamos nosso happy hour, na sexta vararíamos a madrugada em boteco fora de mão.
- Deve ser divertido beber umas brejas com você, fazer a corte, provocar e fazer suas vontades.
- Eu ia almoçar em casa ou na rua durante a semana?
- Você escolhe. Em casa, eu cozinho durante a semana. Quero levar você ao cinema, certamente. Já usou tamanco, desses de mulher, que deixa alta e que os hippies usavam, sabe qual?
- De salto mais grosso?
- É, tipo holandês.
- Tenho muitos sapatos bonecas: azul, lilás, marron , verde, laranja e cobre.
- Eu gosto.
- Você promete cuidar da minha plantação de manjericão?
- Claro, eu tenho uma.

Depois disso nunca mais tiveram notícia um do outro. Gente estranha. Um dia desses o telefone de uma das duas casas toca.




....






Pedido:


Coloquem um botãozinho no lugar daquele prego que insiste em berrar sempre que o salto de borracha sai, com sensor para sacar quando as pantorrilhas estão doloridas. Automaticamente o Luix XV é engolido para dentro do solado. No fim da noite, depois que estivermos abóbora, apresentamos o mesmo modelo do início da maratona e não pés imundos e descalços que não se bicam com o tom dourado do vestido.

quinta-feira, 6 de março de 2008

ESCREVE NO ESPELHO...

- Vamos tomar uma garapa?
- Desde os 10 anos que eu não gosto mais.
- Uma Coca-Cola de garrafinha, então. Uma Coca para dois copos.
- A pequena para dois copos, né? Americanos?
- Sim.
- Agora?
- Sim.
- Sentamos naquelas mesinhas de ferro. Cadeiras de dobrar também de ferro.
- Me espera lá fora, eu só vou procurar uma flor pra colocar nos cabelos.
- Já tô passando aí.
- Vou querer alguns doces do botequinho também. Tudo bem você comprar pra mim?
- Eu só tenho R$ 3,20.
- Eu divido a Coca com você e o doce de abóbora não custa muito.
- Tô chegando aí com a minha monareta.
- Eu vou segurar bem forte na sua cintura e nem precisamos usar capacete, a estrada de flores não é perigosa.
- Com o dinheiro que sobrar, podemos comprar um saquinho de amendoim.
- Faz bem, assim damos para os micos. Há uma reserva ecológica ao lado do botequinho.
- Estamos passando por um velhinho de bengalas conferindo o sorteio da loteria, ele usa um chapéu bonito.
- Você tá correndo muito.
- Vou desabotoar os dois primeiros botões da camisa verdinha para sentir o vento.
- Sua cara fica engraçada pelo retrovisor.
- Segure bem a sacolinha de duas alças, podemos encontrar um pé de fruta pelo caminho.
- Ali, bem ali tem um pé de carambola. Mas você vai ter que subir pra apanhá-las. Ou se eu subir, você faz cavalinho.
- Você fica aí embaixo que eu vou te jogando. Vou pegar bastante, assim você pode dar um pouco pra sua tia.
- Ela faz doce, gosta dessas florzinhas que ficam submersas.


terça-feira, 4 de março de 2008

DE CASO COM MR TAMBOURINE

Amanhã enquanto ele estiver se servindo pra uma multidão com refrões na ponta da língua e braços balançantes estará visualizando a moça em cima da ponte dançando pra gaita dele. O vestido xadrez dela, justo e na altura do joelho tirado às pressas do armário pra ocasião, estará cheirando àquelas lascas amadeiradas compradas no Mappin em 95. O modelo ficaria perfeito numa foto 15x12, em preto e branco.

E ele sairá um pouco da rima ao lembrar dos cabelos despontados correndo pra um lado e pro outro, conforme o corpo dela balança ao som daquela canção com os assopros na gaita. Ele gosta de vê-la dançando nas alturas entre prédios e carros de passeio andando sem pressa.

Nesse momento, a grande platéia berra bis pra “If not for you”. Em nenhum outro lugar do mundo alguém fez bis pra essa canção, ele nem se lembra em qual turnê cantou ela pela última vez. Mas ele sabe que de algum lugar era ela que pedia pra canção continuar, ela queria dançar pra ele mais um pouco.

Por um momento ele ia pensar nela como aquela moça com cara antiga, de nariz turco e ar woodstock que se transformou numa bonita senhora de fios brancos.

Enquanto a platéia inteira passasse para as próximas músicas ele estaria parado naquela, olhando fixamente pra moça do vestido xadrez e olhos fechados que estaria se despedindo com chinelos na mão. Ela lembrava Joan Baez em dias de paz e amor. E era disso que ele mais gostava. Nem em mil possibilidades de LSD ela dançava como naquela ponte, naquela noite.

* tempo verbal, nesse caso, é autoritário: assim e não insiste

segunda-feira, 3 de março de 2008

SERÁ QUE ELA É LOUÇA?

- Ei, que medo daquelas fotos.
- Elas constrangem, né?
- Coisa mais estranha, cheguei a zonzear. Ow, tira elas de lá.
- Nem pensar, pare de olhar se for capaz.


Fiquei cinco minutos inexatos olhando pra aquele pedacinho de foto. A menina ruiva, aquela roupa vintage, aquele cenário de sabão em pó Minerva, tudo aquilo hipnotizava. Corri duas folhas e voltei pra menina. Olhei, olhei, olhei e olhei. Ainda não tinha certeza se desejava ser ela. “O Rose Garden”, de 2001, soube tempos depois.

Depois também soube de mais coisas. Ai, que coisa. Por que elas usavam vestidos parecidos com os da minha avó e sentiam-se princesas assim? Tá, elas não sorriam descaradamente, com ar de barbies do Mundo Mágico de Beto Carrero World, mas tinham um riso contido de quem tem que ficar daquele jeito até terminar de posar.

Pareciam porcelanas também. Pareciam. Pra ser ainda mais tudo sentavam-se em móveis de início de século, ai que raiva desse jargão dito cento e três vezes pelo dono do antiquário. Não que eu gostasse de porcelanas e de peles que de tão finas tinham veias aparentes, mas a menina loirinha usava grampo no cabelo e mantinha o corte na altura do queixo. Um chanel clássico com toque de ramona, adaptei.

O que havia de mais intrigante naquelas imagens perturbadoras? Tudo remetia às travessuras mais escondidas da infância. Da brincadeira de médico e salada mista com o vizinho da frente, o colo estranho que o tio oferecia, a alegria de ter aquela boneca que fazia coisas que ela fazia...aquilo tudo. Eu vi, será que alguém também via?

Da alemã Loretta Lux, que mistura várias técnicas pra conseguir aqueles efeitos, consegui pouco, há parcas traduções por aí. “A infância guarda certa aura de terror, mistério, sexualidade”, já disseram. E eu gosto tanto da estética que por ora nem preciso ir adiante, só vou atrás do resto depois que enjoar de ver o que estou vendo.

Criei legenda pra todas elas: “Sim, como não” (uma japinha linda e que pergunta encarando), “Modinha da Capa” (um cabelinho que estava em alta na novela das oito), “ Joana e Maria sob um sol poente” (duas gemeasinhas com roupas executivas) , “Almofadês” (um dandizinho em miniatura), “Sabão Minerva - Gramados e Céu de Efeitos” (uma espécie de boneca em pose redentora), “Chá Beneficente” (idênticas trajando vestido de bolas), “Valorização de Mobílias Início de Século” (já foi dito).

Ao lado da parede com motivos de galinha d’ angola terão mil impressões dessas.

domingo, 2 de março de 2008

RESPOSTA AO REMETENTE

Do dia em que ela acordou "com uma vontade incrível de ser sua amiga quando criança"*

Ela me escreveu e pediu que eu respondesse...e quando fui ler quase precisei interromper para correr para cá..me esconder. Na verdade, interrompi. Já imaginou uma amizade nascida em salas de aula e conversas de bancos de pátio morar debaixo do seu travesseiro e aparecer nos brindes dos pacotes de sucrilhos como se você não pudesse mais saber que idade tem? E como se eu não pudesse mais saber quem foram meus amigos de infância depois das primeiras linhas, fiquei sufocada. Parei. Olhei à minha volta, buscando os cacarecos e bibelôs a quem não dei uma espécie de santuário que ela deu e que uma vez vi, obrigando a voltar comigo uma sensação de culpa e intriga pelas duas partes da viagem, sem pausa na baldeação. Encontrei uma bailarina, mas que não é da coleção, e sim presente de amigos no ano passado, talvez pra me avisar de que não devo me esquecer das outras empoeiradas nas caixas. E quis que ela tivesse ido me ver dançar.
Voltei à leitura, e quis ainda mais pelo caminho, imaginando como ela se divertiria se eu a colocasse pra ser justo a Chapeuzinho no teatro onde eu mandava nas crianças da rua com uma convicção que hoje chego à quase-vergonha quando encontro algumas delas nas ruas. Tantas, pelos cabelos tingidos e semblante maduro, quando não as que carregam outras crianças com tênis do homem-aranha ou camisetas com escritos que ninguém entendeu, me irritam ao me lembrar que terei que escolher outra para o papel. E eu paro sem perceber e tenho logo quatro ou cinco roteiros que sei que terei que adaptar a cada segundo aos seus xiliques e palpites e o quanto isso vai quebrar minha concentração. A menina sistemática teria problema cardíaco cedo, por levar a sério os detalhes da produção que ela confundiria já no "cheguei, pessoal".
Mas eu queria mesmo era que ela tivesse ido me ver dançar. E quando estreei com a sapatilha de fazer bolhas, tem gesso na ponta, por isso eu não caio! E quando parada no palco por longos segundos porque a parte da música é assim mesmo, calma! ela faria barulhos com o saco de pipocas pra me lembrar que íamos pra casa dela depois e eu assopraria o castelo de cartas de cara e arrancaria com pressa todos os grampos do cabelo pra gente dar espaço pra qualquer idéia que quisesse balança-lo.
Queria ter feito-lhe um texto, mas pro teatro, pra ela mexer todos os sentidos de uma só vez e no dia da apresentação os pais não entenderem nada da gente, porque adulto pra entender criança pensa logo que precisa reduzir alguma coisa, e reduz e bóia tanto e por isso mesmo não gosta, achariam esquisito, talvez dessem um vídeo game pro filho e a gente ia rir tanto de deitar as costas na calçada.
E depois que terminei de ler, parei na foto que ela escolheu pra representar duas dela, ou duas de mim, ou duas de quem? Se somos tão diferentes! E eu que ao conhecê-la de cara quis levar pra casa um pedaço de sagacidade ou ousadia to ouvindo agora que ela já tinha algo de mim bem antes de eu saber que onde moro não é a única cidade do mundo e que pode-se demorar algumas horas para chegar ali onde a gente combinou.
E depois de conhecê-la tanto, eu desconheço a partir de hoje. Porque agora temos exatamente tudo pela frente. Teremos a infância juntas, e na infância não se conhece a saudade.

* Por Amanda Reis

CARTA À PÉTALA


Aquela história da vida e sua injusta geografia eu já conheço, você também. É capaz de nos separar por duas linhas de ônibus, com pausa para baldeação, o que retarda ainda mais nossa contagem regressiva. Mas se você diz que vem às 18h, eu começo a sofrer às 14h.

E hoje eu acordei pensando em como seria se fôssemos amigas no tempo em que usávamos chuquinhas no cabelo e conjuntinhos da Moranguinho. Usei aquela clássica foto de beca, você de vermelho e eu de azul, para ficar pensando em como brincaríamos com nossas bonecas. As minhas eram a Adora, a Pepita e a Simoninha. Todas tatuadas de caneta lembrando nanquim. Sempre fui uma criança destrutiva e estabanada (o tempo de vida das minhas lancheiras, mochilas, bonecas e calçados era tal como a expectativa da família Kennedy). As suas, se não de panos, você não as tinha. A mulher que é capaz de dizer que nem com todo dinheiro do mundo usaria grife, não ia se ligar nas vitrines da Estrela.

É certo que intercalaríamos nossas brincadeiras com assuntos pertinentes a adultos. Abomino seres prodígios, imagino que você também, mas tínhamos um amadurecimento precoce. Me vem a imagem aquela boneca humana e chata do seriado americano . Eu nunca quis crescer, você já se considera uma avó.

Sei que sou eu a dos comentários simplificados, mas você ia ter na ponta da língua a moral da história. Se o caso dissesse respeito a mim, o desfecho seria a meu favor, se fosse a você seria a favor de qualquer outra pessoa. Certamente nem eu, nem você ia querer brincar de casinha (da última vez que passei um vestido, você bem sabe, ele saiu da tábua cheirando à borracha queimada) e você se queima até pra ferver a água.

E pensei também se teríamos as duas os mesmos cabelos com franjinhas, se você ou eu iríamos brigar pra ver quem ia ler em voz alta as histórias do Monteiro Lobato, depois que sua mãe liberasse a pilha de livros que comprou antes mesmo de você ser alfabetizada. Certeza que daí eu ia querer fazer uma montagem e dizer que seria a Emília, essa mania de sugerir impondo é provado que eu trago desde a infância.

- “É tanta convicção na voz que não dá nem coragem de discordar”, diz o ex-amigo da faculdade.

Tá, você diz que talvez nesse momento nós brigaríamos e seria problemático pros nossos pais porque você me morderia a mão.

- “Sempre reagia assim, deve ser porque na época não sabia agredir com as palavras”, confessa, certa de que sua mãe ia vir se desculpar com a minha. Mas eu ia te chutar com a minha bota ortopédica. Por ser miudinha, sempre agi assim, mandava a botinada em qualquer um que ousasse atravessar meu caminho ou que botava fim as minhas discussões com lálálálálálá. Eu era revoltada, coisas de filhos de pais separados diziam os sábios adultos pais de outras crianças.

A verdade é que a gente ia ler muito e brigar pouco. E quando eu tivesse caxumba e batesse o recorde de livros na semana, estou certa de que você ia ficar em casa colorindo desenhos com aquarela, só pra ficar perto.

Ai, as artes. Na parte dos desenhos, você com seu capricho ia salvar nosso trabalho em grupo, eu sempre tinha as idéias, mas nunca conseguiria dar forma. E também eu ia dar a idéia de dar motivos estampados para o mapa do Brasil, com bolas, rabiscos e quadrados e você ia falar: Será? Mas ia topar dando risada. E na parte das redações ia ser um auê. Eu sempre falava de temas proibidos, daí quando ia ler em voz alta a professora falava que o conteúdo estava muito adulto. Já as suas seriam cercadas de poesias e tiradas sensacionais.

Já sei que na TV não iríamos ver juntas a Xuxa e nem o Chaves. Mas em “O Mundo a Lua” a gente ia conseguir se manter calada enquanto durasse todo o programa, algo improvável, já que temos que erguer a mão pra falar.

A saudade rola, rola, como um disco de vitrola...