domingo, 2 de março de 2008

CARTA À PÉTALA


Aquela história da vida e sua injusta geografia eu já conheço, você também. É capaz de nos separar por duas linhas de ônibus, com pausa para baldeação, o que retarda ainda mais nossa contagem regressiva. Mas se você diz que vem às 18h, eu começo a sofrer às 14h.

E hoje eu acordei pensando em como seria se fôssemos amigas no tempo em que usávamos chuquinhas no cabelo e conjuntinhos da Moranguinho. Usei aquela clássica foto de beca, você de vermelho e eu de azul, para ficar pensando em como brincaríamos com nossas bonecas. As minhas eram a Adora, a Pepita e a Simoninha. Todas tatuadas de caneta lembrando nanquim. Sempre fui uma criança destrutiva e estabanada (o tempo de vida das minhas lancheiras, mochilas, bonecas e calçados era tal como a expectativa da família Kennedy). As suas, se não de panos, você não as tinha. A mulher que é capaz de dizer que nem com todo dinheiro do mundo usaria grife, não ia se ligar nas vitrines da Estrela.

É certo que intercalaríamos nossas brincadeiras com assuntos pertinentes a adultos. Abomino seres prodígios, imagino que você também, mas tínhamos um amadurecimento precoce. Me vem a imagem aquela boneca humana e chata do seriado americano . Eu nunca quis crescer, você já se considera uma avó.

Sei que sou eu a dos comentários simplificados, mas você ia ter na ponta da língua a moral da história. Se o caso dissesse respeito a mim, o desfecho seria a meu favor, se fosse a você seria a favor de qualquer outra pessoa. Certamente nem eu, nem você ia querer brincar de casinha (da última vez que passei um vestido, você bem sabe, ele saiu da tábua cheirando à borracha queimada) e você se queima até pra ferver a água.

E pensei também se teríamos as duas os mesmos cabelos com franjinhas, se você ou eu iríamos brigar pra ver quem ia ler em voz alta as histórias do Monteiro Lobato, depois que sua mãe liberasse a pilha de livros que comprou antes mesmo de você ser alfabetizada. Certeza que daí eu ia querer fazer uma montagem e dizer que seria a Emília, essa mania de sugerir impondo é provado que eu trago desde a infância.

- “É tanta convicção na voz que não dá nem coragem de discordar”, diz o ex-amigo da faculdade.

Tá, você diz que talvez nesse momento nós brigaríamos e seria problemático pros nossos pais porque você me morderia a mão.

- “Sempre reagia assim, deve ser porque na época não sabia agredir com as palavras”, confessa, certa de que sua mãe ia vir se desculpar com a minha. Mas eu ia te chutar com a minha bota ortopédica. Por ser miudinha, sempre agi assim, mandava a botinada em qualquer um que ousasse atravessar meu caminho ou que botava fim as minhas discussões com lálálálálálá. Eu era revoltada, coisas de filhos de pais separados diziam os sábios adultos pais de outras crianças.

A verdade é que a gente ia ler muito e brigar pouco. E quando eu tivesse caxumba e batesse o recorde de livros na semana, estou certa de que você ia ficar em casa colorindo desenhos com aquarela, só pra ficar perto.

Ai, as artes. Na parte dos desenhos, você com seu capricho ia salvar nosso trabalho em grupo, eu sempre tinha as idéias, mas nunca conseguiria dar forma. E também eu ia dar a idéia de dar motivos estampados para o mapa do Brasil, com bolas, rabiscos e quadrados e você ia falar: Será? Mas ia topar dando risada. E na parte das redações ia ser um auê. Eu sempre falava de temas proibidos, daí quando ia ler em voz alta a professora falava que o conteúdo estava muito adulto. Já as suas seriam cercadas de poesias e tiradas sensacionais.

Já sei que na TV não iríamos ver juntas a Xuxa e nem o Chaves. Mas em “O Mundo a Lua” a gente ia conseguir se manter calada enquanto durasse todo o programa, algo improvável, já que temos que erguer a mão pra falar.

A saudade rola, rola, como um disco de vitrola...

9 comentários:

Unknown disse...

uma palavra pouco tipica de meu vocabulário resume essa carta: Linda.

Anônimo disse...

quero agora a minha infânciaaaaaa! nós iriamos no banheiro juntas? eu te daria salada e vc me negaria chocolate? hahaha

Hélio Consolaro disse...

Bonito texto. Como dizia minha avó: você vai dar alguma coisa, se já não estiver dando. kkkkkkk
Ambigüidade à parte, o seu texto está bastante lírico. Pareabéns. Beijos
Hélio Consolaro

Renato Rodrigues disse...

O passado misturando-se a realidade é um fardo muito pesado pois se torna um ótimo adubo para o canteiro que na qual foram plantadas as mais dolorosas comparações. mas também faz com que as luzes dos valores de ontem não se apaguem e sem dúvida nenhuma, por mais dolorosa que seja uma infância, ela será sempre a mais bela e doce realidade.

Anônimo disse...

Grá,

a atualidade tenta apagar o que foi nossa infância. Talvez, além do vestido, eu usasse uma fita no cabelo e, de certo, minhas bonecas estariam seguindo as tendências da moda...

Saudade que dói. Conversamos sobre isso, lembra? Somos profissionais, graduados, colegas de jardim se casam... as time goes by...

Não dá pra ter tudo de volta. Só espero que consigamos registrar para nossos netos o que era crescer feliz.

Estou emocionado. Bjs!

César

Anônimo disse...

Sou a que menos tem o que dizer aqui, e não sabe o quanto agradeço por isso.

Blog da Joana Paro disse...

Que lindo... Emocionante, divertido e profundo, querida. Exatamente como você.
Não deixe de atualizar, para nosso deleite e alegria.
Beijo com amor.

Anônimo disse...

Gra, você já leu os volumes que compõem a "tour de force" chamada "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust? Eles estão saindo pela Editora Globo em edição revista e comentada. Fica aí a dica... Beijos!

Anônimo disse...

Graaaa! Lindo texto. Fiquei imaginando as duas crianças birutinhas ouvindo Lucy in the sky e dançando um balé de nuvem. hahaha... Bjokas mil! Ah! Podexá que qdo eu entrar no meu blog eu adiciono o seu novooo!