domingo, 4 de maio de 2008

MALWEE, NÚMERO 16, USAR SABÃO NEUTRO

O cão tá parecendo um sem dono, dormindo com a fuça dentro de um Luiz XV mofado, resgatado ainda há pouco do armário. Ele encontrou o vão entre a roda da cadeira e o sapato jogado no canto e se acomodou. Ele só dorme no vão e com a fuça também acomodada.

É o segundo dia da trinca: meia, moleton usado desde 97 e creme para as mãos. Não vejo muitas perspectivas num dia como este.

Em dias assim, não enxergo nada adiante. É o fim da minha vida em dias como esse. É como o último capítulo do livro que sei que não terei mais tempo de ler nessa vida, o último dia da festa que começou na quinta-feira, a despedida na casa dos tios, em janeiro de 91.

Em dias assim, eu morro sem dor. Não sirvo para muita coisa. Não sei tossir, não sei chorar. Não sei retribuir sorrisos. Não abano a mão na rua. Não espero pelo que sei que vem. Não acho bonita as broas de milho. Nem gizes de cera comestíveis me trariam qualquer boa notícia. Menos ainda incenso para uso individual, a criação que espero há séculos.

Sou morta em dias como esse. É assim desde que eu passava as tardes com Adora, Simoninha e Pepita. Quero ficar morta hoje. Ontem foi um dia feliz, porque comecei a fechar um ciclo lamentoso. Mas em vez das gastas chaves de ouro, vou usar um bisturi.

Mas enquanto esse inverno garoante não passar, com noites caindo ainda às seis, continuarei morrendo nesses dias. Eu quero uma coisa que ninguém é capaz de me dar. Ninguém nem pode saber o que eu quero. Eu quero coisas que queria desde o tempo que conversava com Adora, Simoninha e Pepita.

Eu nunca pedi bonecas duradouras, meus sonhos sempre foram os mesmos. Eu troco algumas coisas por essa coisa que quero tanto. Eu leiloo certas coisas por essa coisa que quero agora. Ordenes e farei, pois hoje estou morta aqui. Tem uma coisa doendo. Tem uma coisa lembrando de outra que aconteceu. A capa do livro, nenhuma música e três mudas de roupa de cada um para lembrar e nenhuma confidência desesperada de quem age com paixão pela última vez.

Você é capaz de adivinhar? Eu não sou capaz de falar o que eu estou querendo. Já fui capaz de escrever cartas ao nove e dizer que queria ainda ontem, mas hoje não tenho coragem. Pode ser que eu queira menos daqui a duas semanas, pode ser que eu fique doente porque quero muito mais, pode ser.

Hoje quero ter cólica, tomar morfina e acordar amanhã às sete com febre. Hoje meu suicídio é com arco e flecha. Eu quero uma coisa que duas pessoas têm.

Lembrava de já ter tido um dia assim, com pouca ou nenhuma perspectiva e um pacote até a boca de tédio. Era um verão do ano seguinte ao que mestruara pela primeira vez. Deitada de bruço no alto de um escorregador, de um parquinho parecendo a casa dos três porquinhos que o lobo bobo assoprou pela segunda vez, ela pensava se nos próximos dez anos teria um outro dia assim, chinfrim.

Pensou em Collor, se a vida dela seria mais engraçada do que a dele. Se poderia ter a vida que ele tinha, pensou em um monte de coisas, pensou. Mas pensou principalmente no Collor e naquela faixa verde e amarela com uma dália na ponta, que ele usava na posse ou no sete de setembro.

Em um dia como este, há muito tempo, ela viu um dos filmes que mais gostava pela segunda vez, mas era um sábado e não uma quinta. Há muitas quintas, ocorridas dois anos atrás, ela mantinha encontros frenéticos, alimentava paixões capengas, encarava sem adeus as despedidas e nunca tinha dito que gostava. Por causa disso, somatizou ansiedade na boca do estômago e sempre vomitava nas sarjetas, antes de ir pro abate.

Perdi um dia, não vi a cara da rua. Quando fizer o saldo dos anos, revendo um calendário que ficou ali por acaso, não terei nada para contar sobre esse dia. Nenhuma violência cometida contra mim, nenhuma conferida no holerite do mês passado, nenhuma coisa que valesse para os dias seguintes desta vida...

Não me arrisco em dias assim. Uso poucas palavras: tudo bem e tanto faz. Cheguei a sair de casa nesse dia tão assim. Foi pra comprar meias vermelhas de algodão com fim terapêuticos, eu que inventei essa calmaria. Cruzei também a porta da frente para saber onde irei plantar as sementes de coentro que descolei com um vizinho.

Hoje é o último dia na vida de um quinzilhão de pessoas e elas só serão avisadas mais tarde. Neste momento, elas estão apenas preocupadas com a roupa que não seca no varal, com o motor do carro e se vão casar. No dia que era pra ser o último dia da minha vida, eu fiz bolo de limão e lamentei pelas coisas dos outros.

Amanhã vou saber se sou uma dessas. Mas já sou uma delas hoje...

3 comentários:

Renato Rodrigues disse...

Muito bom!
E olha que hoje de manhã eu comentei com uma amiga que sempre que vejo passar na Cultura o desenho de um pinguim, eu sinto o cheirinho de massa de modelar e de outras coisas que me fazem lembrar das tardes de frio de 1989.
Pequenos detalhes nos fazem viver e outros ainda menores nos vestem de morte.
A nostalgia é cinza, bela e capaz de nos fazer chorar em dias de pouco sol.

Anônimo disse...

Sinto que você sente falta de alguém que não se importe com cheiro de incenso, que não enjoe fácil com brigadeiro, que tenha lido Dostoiévsky (se é assim que se escreve), que goste de poesia e de Che (não necessariamente nessa ordem), alguém que entenda de moda, mas que não te contrarie, que seja saudoso quanto à infância e que adore ouvir verbos no imperativo.

Aconteceu alguma coisa? Sinto algo tetérrimo em seus textos...

Bjs!

Sobrinho do Misael

Anônimo disse...

Instruções para os dias que seriam os últimos, não fossem os primeiros da outra parte: (1)nunca pense que estes dias são exclusivos ou um oferecimento das Casas Bahia, quase sempre são exibidos em horários pouco nobres para uma platéia pouco seleta; (2)mantenha-se calma, mesmo que um cara enorme, magricela, meio caricato passe por você empunhando uma foice, é tudo jogo de cena e a direção nem é do Tarantino; (3)acredite, a vida tem dessas coisas, olhe só nós dois aqui, já dizia o mago Ritchie; (4)aproveite sempre a boa vontade da vizinhança, mesmo que eles estejam a 2.400km...

BJS!!!!!!!!!