quinta-feira, 18 de março de 2010

PAIXÃO DO DIA SEGUINTE

Naquele tempo, as paixões de Ernesto nasciam das espreitas do banheiro, do buraco da fechadura, nos balcões dos bairros boêmios, lá pelas sete da manhã.

Como faziam os velhos malandros barões da ralé, ele não dava a parte do santo enquanto não via passar à sua frente raparigas com lápis de olho dormido, batom gasto de sabe-se qual boca, a voz rouca por obedecer a tantos pedidos de ais. Era o momento que ele mais gostava delas.

- Faço qualquer coisa por pequenas com olhos borrados do dia seguinte, meu chapa. Minha adega de mel com raiz, meu corte de cabelo bossa nova - frente militar e laterais à maneira do banquinho e do violão- e o pôster com Zico Claudio Adão.

Todos os dias, do outro lado da rua, surgia Rita, 24, rapariga em flor, convencida de que não seria a mulher ideal nem para tipos que gargarejam ao som de Anapion, ainda compram Denorex toda última terça do mês e engraxam os sapatos na rua. Ela sempre ferrava o humor da semana por ter que passar por aquele bar de homens ébrios, que a enjoavam feito um barco de Rimbaud. Passava sem ser vista e sem se fazer notar por Ernesto.

Num dia de caixa errado no banco, depois do expediente, Rita parou para fazer como faziam aqueles que ela odiava prestar atenção. Parou no botequim da esquina e pediu uma, desceu duas, pediu mais. Tinha se debulhado em lágrimas pelo caminho. O rímel passado antes de sair de casa, às nove, desbotara como uma chuva que lava desenhos de tijolos feito em calçadas. Pediu a quinta, a sexta e alguém ao lado disse que pagava a sétima.

Era Ernesto - feliz por ver de tão perto os olhos esfumaçados de preto, o batom dividido entre o copo e sua boca, a voz rouca de tentar se explicar-, disse que era por sua conta.

No décimo copo dela, no décimo quarto dele, ele disse sem cerimônias, o que tinha esperado pra dizer todas as manhãs, lá pelas sete, quando uma delas parasse:

- Não quero mais esse negócio de você longe de mim.

Saltando-se da embriaguez que a tomava correu para o banheiro para ganhar a dignidade daquele homem. Limpou boca, lavou olho, usou Anapion, assentou o uniforme no corpo. Voltou correndo para o balcão para dizer que sim.

Ernesto, que já pagava a rodada pra comemorar o enlace, parou no meio do caminho com a dose do santo assim que a viu. Aprumada, não passava de uma columbina na quarta-feira de Cinzas, sem serpentina, sem fantasia. A dose do santo acabou de descer atravessada, e ele deu as costas. Tinha muitas manias. Ficar sozinho era a que ele mais alimentava ali de frente pro balcão.

4 comentários:

theo dorico disse...

hahaha

Sérgio Luyz Rocha disse...

...leio, releio, me apaixono...acho demais...e me pergunto: caralho, por que Paulo Coelho vende tanto?

beijos, garota...

Thaís Morrison, disse...

Como amo o que você escreve. Obrigada por me inspirar...

Renato Rodrigues disse...

me amarro nos detalhes...
conheço muitos ernestos por essas bandas de cá rsrsrs
delicia de se ler